17.7.06

Aprendiz de viajante


Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».
Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes - e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite... Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo» em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante dentro de mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.

in O Anjo Mudo, Al Berto

Como eu concordo com este texto...
Sem mais comentários.

Até à próxima.
Namastê
Sandra

11 comentários:

Vida disse...

Eu também concordo, já viajei um bocado neste mundo, e o sabor amargo da separação muitas vezes nos traz a alegria de novos encontros e conhecimentos. Não nasci para ser nómada, gosto muito do meu canto, do meu espaço talvez mesmo por ter sido obrigada a abandoná-lo várias vezes, mas despojarmo-nos de algum materialismo seria o ideal. Gosto muito de ler Al Berto.

Beijinhos com carinho.

£ou¢o Ðe £Î§ßoa disse...

Eu gosto muito de ler as palavras do Al Berto.
O texto que aqui tens dele é lindo e muito sentido...

Vou deixar-te um link para leres outras palavras dele, e assim dou-te a conhecer um canto meu onde coloco palavras de outros...

http://blog.comunidades.net/loucodelisboa/index.php?op=arquivo&pagina=13&mmes=06&anon=2006


Beijo, até outro momento ou instante!

isabel disse...

Gosto de viajar também. Mas o regresso é uma sensação tão boa.

Tenho viajado muito na blogosfera...e aprendido outro tanto....

Beijos

Elisheba disse...

Gostei!! beijocas fofas

vinte e dois disse...

Conhecia de nome, mas nunca tinha lido Al Berto. Surpreendeu-me bastante pela positiva, confesso!

Andressa Pacheco disse...

oiii!
Gostei muito de conhecer o seu blog e estou passando p/ deixar uma mens no seu cantinho!
(`'·.¸(`'·.¸ ¸.·'´) ¸.·'´)¸.·'´)
«`'·.¸.¤ ¤.¸.·'´»(¸.·` * (¸.·` *
(¸.·'´(¸.·'´ `'·.¸)`' ·.¸)
¸.·´ P/ muitos o sorriso pode ser insignificante,
( `·.mas com certeza tem grande valor.
`·.¸ )Enriquece a quem ganha
¸.·)´ e quem dá não fica mais pobre.
(.·´ Dura apenas um instante,
*´¨)mas pode permanecer eternamente
( `·.¸na lembrança.
.. * . (\ *** /)
.* . * ( \(_)/ ) * * .
.* . * (_ /|\ _) . *
.* . * . /___\ * . . *
`·.¸ ) Ninguém é tão rico que possa desprezar
¸.·)´ e nem tão pobre que não possa dar.
(.·´ Mas se um dia encontrar alguém
*´¨¸) que te negar um sorriso
(.·´ dê-lhe um dos seus, pois com certeza
*´¨)esta pessoa precisa de um sorriso
( `·.¸tanto quanto aquele que não consegue sorrir.
«`'·.¸¤ ¤.¸.·'´»(¸.·` * (¸.·`*Bjs
(¸.·'´(¸.·'´ `'·.¸)`' ·.¸)

Anónimo disse...

Gosto de viajar no deserto.

EdM


“O deserto não é a ausência.
È o estado anterior à presença, antes de os nómadas o atravessarem, antes de os aventureiros lá se deterem para em seguida tornarem a partir noutra direcção. Ele é. Sem precisarmos de lhe delimitar contornos, uma geografia, uma superfície, ele é o deserto. Esse lugar onde nos perdemos, onde o mundo é aniquilado, onde o tempo é desprovido de velocidade, onde o dia e a noite se sucedem sendo um qualquer dia e uma qualquer noite, com o mineral presente, de formas efémeras, a poeira, a pedra, os rochedos, a areia. E a toda a volta, o espaço e o céu. Ele é o lugar de nenhures onde por vezes uma palavra pode apoderar-se do seu infinito.”

O Viajante Magnífico, Yves Simon

Anónimo disse...

mas... a melancolia é uma doença?

Estou certo que se o Al Berto não fosse melancólico não nos teria brindado com esta pérola.

Falo por mim...
Vejo a Melancolia como um dos mais belos estados de alma...

DE-PROPOSITO disse...

Uma verdade nua e crua. 'CADA UM VÊ À SUA MANEIRA'.
Fica bem.
Manuel

Pierrot disse...

Eu assino por baixo deste magnifico texto.
Ainda há pouco tempo andei pela Lituania e minha amiga, nem me lembrei de me lembrar de mim...
Viajar sempre...
Bjs
Eugénio Rodrigues

Su@vissima disse...

É mesmo...é dificil ver o mesmo que outros olhos vêm... podemos no entanto tenta ver com os olhos de alguém :)

Uma boa escolha...

Obrigada, voltarei com mais tempo.

Beijo daqui